De se ressaltar no livro que ele está falando das pessoas, dos cidadãos, dos índios, dos portugueses e dos escravos negros. Não é um livro sobre os personagens históricos, suas leis, guerras e políticas. Esses são citados apenas de passagem, se tanto. O personagem principal do livro - como também o é da história do Brasil e do mundo - é o cidadão comum. Uma narrativa que se desenvolve em torno dos senhores de engenho, das suas esposas, dos índios, dos negros, dos jesuítas e dos filhos de todos esses. Enfim, em torno do povo brasileiro. Do cotidiano dos tempos coloniais. Às vezes chegando até ao tempo em que foi escrito, no início dos anos 1930.
Trata-se de uma obra extremamente bem documentada. Pesquisa profunda e cuidadosa, citando inúmeras referências. Na edição que eu li, constavam mais de sessenta páginas de bibliografia. Inclusive muitos documentos históricos e jornais do período colonial e do império. Um trabalho muito bem feito. Muito bem feito e muito bem escrito. Um estilo agradável, contundente e que vai além do livro de história para ser também uma obra de literatura, como arte.
Claro que o livro não é cientificamente atualizado ou correto o tempo todo. Há, a meu ver, algum exagero quando ele fala em algumas características genéticas que os povos (e em algum caso, mesmo famílias) possuiriam e que determinariam certas características dessas famílias e povos. Ele também fala em "eugenia" e superioridade de uma "raça" sobre a outra de uma forma que não se fala mais hoje em dia. Quando fala da influência do povo judeu sobre o povo português, por exemplo, chega a beirar o anti-semitismo. Justamente pouco antes da segunda guerra. Mas há que se inserir o autor no contexto do seu tempo, e no princípio dos anos 30, creio eu, a ciência apontava realmente para essas diferenças mais profundas, as quais hoje a ciência nos mostra que não são tão profundas assim, chegando a ser questionado o próprio conceito de "raças" humanas.
Mas o livro transcende essas questões, e faz com que todos os brasileiros se identifiquem com suas origens. Faz com que percebamos de onde viemos e que temos traços do índio, do português e do negro. Uma miscigenação bem sucedida que, pra mim, é um dos maiores motivos de orgulho de ser brasileiro. O fato de que conseguimos conviver em paz e, relativamente unidos como um povo só, independente da diversidade das nossas origens étnicas, culturais ou religiosas tão diversas, enquanto a maioria do resto do mundo ainda se comporta de forma um pouco (ou muito, dependendo do lugar) diferente.
O livro transcende as críticas. Transcende a sociologia e a antropologia. É literatura. E é sobre nós. Sobre o nosso passado. Sobre a nossa infância às vezes. Embora não fale no Rio Grande do Sul, que no período colonial talvez tivesse mais semelhanças com a América espanhola que com o Brasil, é possível, e pra mim inevitável, se identificar com o que ele diz. Mesmo o gaúcho que nunca tenha ido a Bahia, se identifica com o tabuleiro da baiana. Nem que seja através da música do Caetano ou de um gibi do Zé Carioca.
Em resumo, um livro que, ao descrever rituais de danças indígenas, consegue fazer uma ponte para que eu - que nunca sequer vi um índio de perto - consiga identificar nesses rituais lembranças da minha própria infância é um livro especial pra mim. Trata-se de um livro que todo brasileiro deveria ler.
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